Organizações escolares flexíveis – Os Ciclos de Formação

 
 
 

Minha intenção era transcrever a palestra do Prof. Miguel, e disponibilizá-la por aqui, em áudio e texto, porém encontrei no site da TVE uma entrevista interessante, que engloba grande parte do que foi exposto à turma.

 

Enjoy…

Miguel Arroyo

Transcrevemos parte de um diálogo realizado entre o professor Miguel Arroyo e a profa. Eustáquia, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, em 2003. Acreditamos que este diálogo possa nos ajudar a desconstruir os principais mitos envolvidos no debate sobre os Ciclos de Formação. A partir desta entrevista, desenvolveremos o programa cinco da série: Organizações escolares flexíveis.

Educar, respeitando os tempos humanos: um diálogo com Miguel Arroyo

Eustáquia: Ciclos, mais uma moda pedagógica?

Miguel Arroyo: Comecemos trazendo um pouco de história: os ciclos não são mais uma moda pedagógica. Há muitas administrações, sobretudo as populares, que estão organizando a escola em ciclos de vida: Belo Horizonte, Blumenau, Chapecó, Belém do Pará, Alvorada, Porto Alegre etc. Os tempos educativos da escola se propõem a respeitar os tempos da vida, tempos sociais, mentais, culturais dos educandos.

É bom saber que a maioria dos sistemas educativos da Europa já está organizada assim. Há tempos já não se fala mais em série. Nós somos um dos países em que a organização seriada é uma das mais rígidas do mundo. A lógica da organização seriada é tão forte que influencia os agrupamentos educativos até na diversidade de práticas de educação não formal. O respeito aos sujeitos educandos (as) e a seus tempos humanos, mentais, culturais, sociais, identitários deveria ser um princípio norteador de toda ação educativa.

De tal maneira a organização das instituições educativas respeitando os tempos dos educandos não é uma moda que, pelos dados do IBGE, quase 25% das crianças do Brasil já estão organizadas em ciclos, mas são concepções de ciclos muito diferentes. As concepções de ciclos nem sempre são estas que eu coloquei. Chamam de primeiro ciclo o antigo primário, de segundo ciclo, o antigo ginásio. Estes agrupamentos não são feitos a partir dos ciclos da vida dos educandos. É mais uma forma de organizar as séries. Ciclos aí são formas de organizar as séries. Insisto, são amontoados de séries, ciclos de séries, e não ciclos de vida, tempos de vida que exigem respeito aos educandos.

Eustáquia: O que se pretende com a educação em ‘ciclos’?

Miguel Arroyo: A idéia principal é de uma educação que parte dos educandos. Fala-se muito que a escola e nós, educadores, giramos em torno dos educandos, mas na verdade giramos mais em torno dos conteúdos do que dos educandos. Então, um ponto fundamental é que se deveria recuperar os educandos como o foco central da educação. E recuperar também os educadores enquanto educadores, e não só como professores e transmissores de conteúdo.

Eustáquia: E a escola? E as instituições educativas?

Miguel Arroyo: A segunda idéia é entender que a função da escola e de toda instituição educativa é dar conta do desenvolvimento pleno dos educandos — se preocupar com a formação total, em todas as dimensões, dos educandos. A escola e todo projeto educativo têm que ter um projeto de formação, de desenvolvimento pleno dos educandos.

Eustáquia: É aí que entram os ciclos?

Miguel Arroyo: A terceira idéia é tentar entender como se dá o desenvolvimento dos educandos, como se formam, como aprendem e se socializam. Quando nos colocamos perante essa questão, a resposta é que o processo de formação do ser humano passa por tempos diferentes: tempo da infância, da adolescência, juventude, vida adulta. É uma questão de reconsiderar a idéia que sempre esteve presente, de que a formação do ser humano é um processo de construção que passa por temporalidades diferentes. É recuperar algo que fazemos na vida familiar. Nós não tratamos da mesma maneira uma criança de dois anos, uma de três, um pré-adolescente de dez, ou um adolescente de catorze. Nós tratamos nossos filhos de acordo com seus tempos, de acordo com seus ciclos. A idéia de ciclo é ciclo da vida, é tempo da vida, temporalidade da formação humana.

Eustáquia: Então o ciclo é da vida da própria criança?

Miguel Arroyo: Essa idéia tem que ficar bem clara. Não é tempo da escola, não é ciclo da escola, nem progressão continuada ou descontinuada, nada disso. É algo mais elementar. É partir do pressuposto de que cada pessoa, em cada tempo da vida, vai se constituindo como sujeito cognitivo, afetivo, ético, cultural, social, corpóreo, estético etc., em cada tempo. Então, a preocupação fundamental passa a ser esta: como entendermos melhor o que acontece em cada tempo da vida, como entendermos melhor, em cada tempo, a mente humana, a socialização, as aprendizagens, a construção das identidades. Em síntese, como organizar o processo pedagógico escolar para dar conta dessa diversidade de tempos, ciclos de sociabilização, de aprendizado, de construção dos sujeitos humanos. Essa é a idéia básica. Como vocês vêem, é uma idéia elementar, nada revolucionária; ao contrário, é bastante chocante, porque havíamos nos esquecido disso, de que uma criança tem que ser educada como criança, um adolescente como adolescente, um jovem como jovem.

Eustáquia: E como a escola tem que se reorganizar?

Miguel Arroyo: A questão que se coloca para a escola, como para toda instituição educativa, é de como organizar o tempo, os espaços, as práticas educativas, os conteúdos, os horários, os trabalhos dos professores e professoras, de tal maneira que dê conta do desenvolvimento e formação plenos dos educandos, respeitando cada tempo. Isso é uma prática concreta, que vai desde como organizar as turmas entre os que sabem ler e os que não sabem, respeitando os tempos da vida. Criança fica junto com criança, pré-adolescente com pré-adolescente, adolescente com adolescente…

Eustáquia: Então, o adolescente que não sabe ler fica aonde?

Miguel Arroyo: Mas aí começa a velha questão que tínhamos nas séries: mas, e se não souber ler, onde fica o adolescente? Com os adolescentes ou com aqueles que não sabem ler?

Para o sistema por ciclos, que respeita os tempos da vida, vai ser importante se ele sabe ler ou não. Porém o mais importante vai ser se ele é criança, jovem ou adolescente, ou adulto. Se ele é jovem, adolescente ou adulto terá que ser ensinado como jovem, adolescente ou adulto, e não como criança.

Se um adolescente que não sabe ler é colocado com um grupo de crianças que também não sabem ler, passa-se por cima da auto-estima dele. Se estou preocupado com ele como sujeito humano, tenho que dar conta como profissional de todas as dimensões de sua formação; eu diria que para não quebrar sua auto-estima não é bom que ele fique retido com crianças. É melhor que ele continue com os colegas de idade. Então buscaremos os mecanismos mais apropriados para que ele aprenda a ler como adolescente, respeitando seu tempo e seu ciclo de vida, sua estrutura, sua mente, suas vivências de adolescente.

Eustáquia: Então um adolescente que não sabe ler é inserido em uma classe de adolescentes que já estão cursando?

Miguel Arroyo: Sim, porque ele é adolescente. Agora, a obrigação dos profissionais que tratam da adolescência é saber quantos não sabem ler, e então ensiná-los a ler como adolescentes, respeitando sua mente, sua vivência, sua vinculação com a lecto-escrita. Trata-se de ensiná-lo a ler, que é a função da escola, não se esquecendo de sua condição de adolescente. Quando partimos dos educadores (as) e suas temporalidades humanas, mudamos as formas de agrupá-los seja na escola ou em qualquer projeto educativo.

Como disse Paulo Freire, o adulto não aprende a ler como criança; ele aprende a ler como adulto. E nós temos que ensiná-lo a ler a partir de sua cultura adulta, de suas vivências adultas, de sua condição de adulto. Isso já vale para a educação de jovens e adultos desde a década de 60, inspirado muito na pedagogia de Paulo Freire. Queremos que isso valha para todos, não só para adultos, mas também para adolescentes, jovens e pré-adolescentes.

Eustáquia: Pode não saber ler, mas…

Miguel Arroyo: O fato de um adolescente não saber ler não quer dizer que ele parou de crescer; ele continua sendo um ser humano que cresceu como ser humano. Os seres humanos não param de crescer em sua mente, em sua socialização, em sua auto-estima, em sua identidade, ou na sua capacidade de interpretar o mundo, independendo de saber ler ou não. Se fosse assim, os analfabetos seriam criancinhas, e não são! Pode haver um analfabeto que é líder sindical, líder do bairro, que dá conta de trabalhar, de construir uma família, de amar, de ter uma visão do mundo, às vezes mais lúcida do que uma pessoa que sabe ler.

Ou seja, o ser humano não pára porque sabe ou não sabe ler. Agora, a função da escola, a nossa função como educadores(as), é que ele saiba ler, mas no tempo em que ele está, não ignorando esse tempo. Não estaremos desmerecendo o direito à leitura, à escrita, estamos dando a esse direito concretude humana. O respeito a seu tempo humano, cultural, mental, social, identitário vale para toda proposta de formação.

Eustáquia: E que seja respeitado…

Miguel Arroyo: Muita gente pensa que porque fazemos isso não damos muita importância para que se saiba ou não ler. Nós damos muita importância para quem saiba ler! Paulo Freire dava muita importância à alfabetização de adultos dentro de uma concepção de educação plena e respeitosa de suas identidades. E qual a diferença? É que ele respeitava o adulto enquanto adulto, com sua bagagem cultural, toda sua relação com a lecto-escrita, ainda que não a domine (o que é diferente de uma criancinha), e toda a relação da lecto-escrita com sua vida, seu emprego, a produção de sua existência, sua família, sua cultura.

Eustáquia: Mas isso é novidade para os professores?

Miguel Arroyo: O que percebemos é que em todas as redes municipais e estaduais, em todas as escolas, na sala de aula, existem muitas práticas pedagógicas que já respeitam os educandos. Uma professora que trabalha com crianças sabe que elas são crianças; se trabalha com adolescentes, sabe que são adolescentes. Nós já encontramos na cultura docente muita sensibilidade às diferenças entre jovens, adolescentes, crianças ou adultos. Os profissionais da educação, de alguma forma, estão atentos aos sujeitos com os quais trabalham. Só que, como as escolas não davam demasiada importância a essa atenção para o sujeito, dando mais importância às vezes à grade curricular, isso estava um pouco soterrado. Qual é a nossa função? É desenterrar, permitir que isso vá emergindo e seja valorizado, redescobrindo que existe muito mais do que a gente pensava: sensibilidade com os educandos, não só preocupação com ensinar a ler, escrever e contar, mas preocupação também em desenvolver sua afetividade, sua memória, sua sensibilidade, seus sentimentos, sua identidade, na sua diversidade.

Eustáquia: Trata-se de uma revalorização?

Miguel Arroyo: O que vêm sendo feito é fazer com que os professores redescubram que já estão dentro desta perspectiva. Também trabalhamos muito com os educadores para perceberem que em casa não tratamos igualmente adolescentes e crianças, que nunca castigaríamos um adolescente colocando-o com seu irmãozinho de 6 anos porque saiba ou não saiba ler. Ninguém faz isso. Temos uma pedagogia familiar muito diferente da pedagogia escolar. Nas diversas formas de educação não formal é mais fácil respeitar os tempos de vida dos educandos(as).

Vamos também pouco a pouco organizar grupos de formação, semanas pedagógicas, a fim de que aumente a sensibilidade para com os educandos como sujeitos em seus diversos tempos.

O que importa é que os professores e todos os educadores percebam que trabalham com crianças, com adolescentes, com jovens e entendam cada vez mais isso, a tal ponto que cheguemos um pouco como acontece na área da saúde – não levamos nossos filhos crianças num geriatra, os levamos para um especialista da infância, um pediatra. Na área da saúde já agimos assim. Cada profissional tem que entender não só do coração, do pulmão, mas também dos ciclos da vida em que as pessoas se desenvolvem, como seres humanos. O que é normal na área da saúde deveria ser também na área da educação. Trabalhamos com seres humanos totais em tempos de formação de aprendizagem, de socialização e de desenvolvimento. Que sabemos da especificidade de cada tempo? Como respeitar cada tempo humano?

 

Fonte: Salto para o Futuro.

6 Comentários

Arquivado em Ciclos de Formação, EDUCAÇÃO, Gestão da Escola

6 Respostas para “Organizações escolares flexíveis – Os Ciclos de Formação

  1. Olá ! Aqui no Rio estamos implantando o sistema de ciclos. Acho que o problema não está na idéia em si, mas sim no modo da implantação. Não vejo como pode dar certo em salas lotadas, sem infra – estrutura e sem treinamento adequado. E é isso que está acontecendo aqui na cidade maravilhosa.

  2. Andrea,

    Primeiramente agradeço por prestigiar nosso blogue, e mais ainda por compartilhar sua experiência conosco.
    Realmente a falta de estrutura e trinamento é uma das barreiras que a implantação de ciclos enfrenta, mas que não é algo novo, pois essa deficiência já está lá, acontece que a simples mudança do paradigma de como fazer educação, coloca estas e outras dificuldades em evidência, dando a falsa impressão, principalmente para quem está de fora, de que foi essa implantação que proporcionou a falta de verba, planejamento e capacitação que é latente em (quase) toda a esfera pública da educação brasileira.
    Soma-se a isso a histórica falta da identificação do professor/pedagogo como protagonista e não como um simples “apêncice¹” de um processo onde infelizmente a escola é o ator principal, em detrimento da valorização do “Oficio de Mestre²” e de sua principal razão de existir: o aluno.

    1:http://edrev.asu.edu/reviews/revp5.htm
    2:idem

  3. ivone monteiro dos reis pulquerio

    Aqui em Cuiaba a implantação dos ciclos de formação foi implantado em 1999. Acredito que ao longo do percurso temos enfrentados inumeros desafios, mais as escolas encontram-se cada uma no seu estagio, uma vez que a caminhada esta sendo construida em ritmos diferentes. A nossa organização se dá por tres ciclos, onde leva-se em consideração as fases de desnvolvimento do ser humano. Hoje, estamos vivendo um desafio, o sistema acretiva que devemos repartrir os ciclos em 4, onde o primeiro seria de tres anos, e os tres posteriores de 2 anops, onde os dois ciclos finais seriam seriam disciplinares. Na concepçao que fui construindo ao longo dos anos, acredito que estamos fazendo uma profunda fragmentação. Solicito que me ajudem a refletir sobre a questao.

  4. ivone monteiro dos reis pulquerio

    Aqui em Cuiaba a implantação dos ciclos de formação foi implantado em 1999. Acredito que ao longo do percurso temos enfrentados inumeros desafios, mais as escolas encontram-se cada uma no seu estagio, uma vez que a caminhada esta sendo construida em ritmos diferentes. A nossa organização se dá por tres ciclos, onde leva-se em consideração as fases de desnvolvimento do ser humano. Hoje, estamos vivendo um desafio, pois a rede podera caminhar para repartrir os ciclos em 4, onde o primeiro seria de tres anos, e os tres posteriores de 2 anops, onde os dois ciclos finais seriam seriam disciplinares. Na concepçao que fui construindo ao longo dos anos, acredito que estamos fazendo uma profunda fragmentação. Solicito que me ajudem a refletir sobre a questao.

  5. VANIA MARIA BERGELT RANGEL

    QUERIA SABER EM QUE ANO SURGIU OS CICLOS DE FORMAÇÃO E QUAIS AS ESCOLAS QUE ESTÃO UTILIZANDO NA VERDADE É DIVIDIDO OS CICLOS DE FORMAÇÃO?